Horizonte teórico

A filosofia, a história, as ciências cognitivas, as ciências sociais, as ciências tecnológicas - entre outros campos de saberes e fazeres - vêm se debruçando sobre o conceito e o lugar do corpo na contemporaneidade, e sobre fricções e agenciamentos que se produzem nas fronteiras entre corpo e: cultura, sociedade, mídias, linguagem, etc. De um corpo outrora entendido como instância impura e corruptível a ser superada, e/ou mero conjunto de reações físico-químicas, e/ou autômato animado e controlado pela alma ou pela mente, e/ou reflexo passivo do seu meio (VILLAÇA E GÓES, 1998); o corpo passa a ser reconhecido na sua espessura ontológica, e discutido a partir de complexidades que daí se articulam. 

Em diálogo com essas idéias, a cena contemporânea vem recusando a noção de um corpo como pura representação, e reivindicando seu estatuto de usina criativa – lugar de presentificação ou representificação (BONFITTO: 2009). Revela-se, assim, a idéia de um corpo que a um só tempo apresenta características de mapa e de cartógrafo, forma e força, objeto e sujeito de afecções. Entra em cena um ator que deseja propor, compor, criar autonomamente, reinventando-se entre mimeses e poiesis (COHEN: 1998). E nesse movimento ambivalente, nessa perspectiva porosa e movediça, descobre nova potência ético-estética.

O grupo Poéticas do Corpo: do treinamento à cena visa investigar as potências expressivas deste corpo em contextos de experiência (BONDÍA: 2002), explorar meios (princípios de treinamento) para fomentar poéticas corporais como exercício artístico – no sentido da busca por recursos composicionais; e por outro lado de afirmação e regulação da própria singularidade - o trabalho do ator sobre si mesmo e em contato com alteridades, como estratégia (micro)política de conduta na cena e fora dela.

A pesquisa se produz em zonas fronteiriças. No espaço entre dimensões poéticas e políticas do corpo – dilatando a idéia de política na direção dos sentidos dados por Deleuze e Guattari à noção de micropolítica, como uma ação dos e nos afetos, molecular, mínima e potente, distante da idéia de política partidária, panfletária ou de palanques (1995). Nos interstícios e bordas permeáveis entre arte, e campos como filosofia, ciências, técnicas orientais de regulação energética (como seitai-ho, chi kung, ioga) meios tecnológicos e as negociações transdisciplinares que daí resultam. Nos espaços híbridos entre teatro, dança, performance, música... Espaços entre, mestiços, desbravados em sua vocação para heterogênese.

Ainda em relação ao objeto deste projeto, estão ações e noções ligadas à dramaturgia de ator e/ou dramaturgia do corpo – espécie de textualidade ou discurso não necessariamente verbal nem pré-escrito, que o corpo produz para a cena, ou em cena, e que, tanto quanto palavras e outros elementos cênicos, enuncia, significa, produz e vetoriza sentidos.

O termo “dramaturgia” articulado a outros, como nas expressões “dramaturgia de ator”, “dramaturgia da luz”, “dramaturgia do corpo”, etc, remete à situação de maior autonomia na construção de sentido por parte de cada uma das funções artísticas ligadas ao espetáculo. Isso não significa, necessariamente, que cada um desses sentidos deixe de convergir ou pelo menos dialogar com um eixo dramatúrgico (o qual nem sempre é textual), ou que isso ocorra sem a coordenação geral de um diretor.

Interessa também observar nessas expressões o valor atribuído ao termo dramaturgia, como aquilo que caracteriza o poder de enunciação, construção de discurso ou de vetorização de sentidos de um elemento cênico. A expressão dramaturgia é muitas vezes associada a outras como “escritura”, “verbo”, “linguagem” as quais podem remeter a uma esfera logocêntrica. Entretanto, uma tradução etimológica possível para dramaturgia seria técnica, arte ou trabalho das ações ou dos feitos, o que nos aproxima do sentido que a palavra tem articulada a outros termos, como em dramaturgia de ator: o trabalho das ações do ator.

Importante ressaltar aqui a evidente relação entre tais expressões e o lugar do texto teatral na cena contemporânea. Artaud é, talvez, a figura mais emblemática na ruptura do “textocentrismo” na cena, ainda que precisemos atribuir este quadro a uma série de outros nomes e encadeamentos históricos, dentro e fora do teatro. Spinoza, percebendo a potência do corpo e dos afetos; Nietzsche, provocando com a “morte de Deus” e da linhagem patriarcal e hierárquica da filosofia ocidental dominante; Derrida também problematizando dicotomias ocidentais através do método da desconstrução e do elogio à diferença - nestes e em outros autores e artistas, paradigmas epistemológicos vão sendo colocados em cheque paulatinamente. Como metáfora mais recente, e igualmente emblemática, há a figura do rizoma – múltiplo, não centralizado e não teleológico - ao qual Deleuze e Guattari contrapõem o modelo árvore – enraizado (tradição), unidirecional (unívoco), vertical (hierárquico, causal) (1995)

É também como ressonância e resposta (micro)política e poética da desconstrução de hierarquias como: a supremacia platônica da idéia sobre o sensível, a superioridade cristã da alma sobre a carne, a primazia racionalista e cartesiana de logos sobre a experiência - dentre outras polarizações clássicas derivadas - que o corpo, a sensorialidade, assim como a toda a materialidade cênica, vem ganhando estatuto de enunciadores em cena.

Nessa perspectiva, nosso grupo se debruça sobre temas do processo criativo atorial, tais como presença cênica, movimento, gesto, ação física, ignição psicofísica, impulsos, estado, partitura e subpartitura, etc: idéias de eficácia pragmática na pesquisa psíco-física do ator. Também são discutidas terminologias de estilos ou tendências ligados à presença do corpo em cena - como teatro físico, dança-teatro, pós-dramático e performance - visando contornar molduras, dilatar acepções e perceber sobreposições.

Exercitando e observando os olhares sobre a processualidade da pesquisa e seus recortes parciais, são pensadas, ainda, relações das noções mencionadas anteriormente com o processo de construção de sentido(s) na cena. Que camadas de sentidos – estéticos, semânticos, patéticos, (DIDI-HUBERMAN: 1998) e ainda éticos, energéticos e sensoriais – podem emergir e agenciar-se nesse contexto? Como pensar a vocação polissêmica que o enfoque corporal parece indicar, e outras questões de recepção daí derivadas?

O grupo se propõe, por fim, a apoiar a contínua formação e qualificação de atores-compositores, artistas pesquisadores em pleno exercício de seu potencial ético-estético: a exploração da expressividade do corpo como uma ação de princípios (micro)políticos (conduta, ethos de grupo, auto-regulação, equilíbrio e fluxo entre singularidade e alteridade) e poéticos (composição, dramaturgias, qualidade de presença, representificação, cuidado estético, etc.)


Alice Stefânia

Referências bibliográficas

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber de experiência. In Revista Brasileira de Educação, 2002. Disponível em http://www.anped.org.br/rbe/rbedigital/RBDE19/RBDE19_04_JORGE_LARROSA_BONDIA.pdf
BONFITTO, Matteo.  A cinética do invisível. São Paulo: Perspectiva, 2009.
COHEN, Renato. Work in progress na cena contemporânea - criação, encenação e recepção. São Paulo: Perspectiva, coleção Estudos, 1998.
CURI, Alice Stefânia. Por uma tao expressividade. Processos criativos em trânsito com matrizes taoístas. Tese de doutorado. Salvador: Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UFBA, 2007. Orientadora: Ciane Fernandes.
DELEUZE, Gilles e GUATTARI, Félix. Mil platôs - capitalismo e esquizofrenia. Vol. I. Rio de Janeiro, 34, 1995.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. São Paulo: 34, 1998. Tradução: Paulo Neves.
VILLAÇA, Nízia e GÓES, Fred. Em nome do corpo. Rio de Janeiro: Rocco

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